ERANOS – BANG! BANG! A CONSCIÊNCIA DE SI.
Eranos é um termo grego (erano) que significa banquete frugal entre
amigos, em que cada um dos comensais se serve e partilha os alimentos trazidos
por todos. Esta palavra encantatória é capaz de atingir diretamente a essência
dos rituais praticados na juventude, que nos permitem inventar o futuro, questionar
todas as visões que possam significar a existência. Podemos pressentir em eranos, uma ambivalência subtil, pois
evocamos a materialidade do alimento para o corpo e também a imaterialidade da
consciência de si, entendida como veículo do conhecimento, capaz de criar
palavras e ideias transformadoras, como aquelas que faziam parte da imagética vivenciada em
casa do Agostinho Sanches (1953-2009), onde se partilhava alguma coisa que se comia, mas onde
se discutia e se especulava sobre livros, revistas, discos, textos pacifistas, desenhos,
pinturas, máquinas fotográficas, fotografias mal impressas, e se combinavam
idas aos cinema, às livrarias, à Fundação Calouste Gulbenkian, à Sociedade de
Naturalogia de Lisboa para assistir a uma conferência de algum «mahatma», que
nos trouxesse o perfume da Índia mística, ou à Sociedade Nacional de
Belas-Artes de Lisboa na esperança de reconhecer atualidade e identidade nos
novos artistas portugueses como aconteceu com a nova figuração em sintonia com
a irreverência da Pop Art.
Na década de 70, vivíamos
intensamente os últimos estertores do Estado Novo, protagonizados pelas
conversas em família do Marcelo Caetano, teledifundidas a preto e branco,
assistíamos aos embarques dos mancebos para as províncias ultramarinas, com o
firme propósito de manter uma guerra a distância que se iniciara em 1961 e
anunciava o fim do Império e dos altos desígnios impostos a um povo pobre de tudo.
O regime político «orgulhosamente só», teimosamente afirmava a «mitologia lusitana»
(António Ferro) que passava pelo sacrifício e pela resignação instaurados nas
medalhas recebidas no Terreiro do Paço (10 de Junho), espécie de amputações
devastadoras que criavam uma dimensão de irrealidade só suspensa pelo som das
vozes de comando dadas aos «meninos da luz» (Colégio Militar) que desfilavam
com todo o aprumo evocando o «zacatraz» e a divisa: «um por todos, todos por
um». O respeito e a amargura desses tempos heroicos está sinalizado no meu
imaginário pelo «silêncio escultórico» emanado dos claustros do Colégio,
associado à generosidade do batalhão perfilado que chamava pelos alunos que haviam
morrido em África, respondendo a uma só voz «presente!», para que o seu supremo
sacrifício nunca fosse esquecido.
As mistificações que podem
«justificar» a necessidade de uma guerra passaram a ser testemunhadas (informação-desinformação)
pelas imagens fotográficas, pelos filmes mais ou menos ficcionados, pelos documentários,
pela investigação académica (dissertações e teses), pelos imensos ensaios,
pelas coleções dos museus militares, pelos arquivos, pelos desenhos, pelas
gravuras, pelas pinturas, pelas esculturas, pelas medalhas comemorativas, pelos
monumentos, pelas exposições de todo o tipo e natureza, que criam uma densidade
especulativa e espetacular, aparentemente tranquilizadora, perante a
instantaneidade dos conflitos armados que testemunhamos quotidianamente (terrorismos),
e que «justificam» viver-se num estado de exceção perpétuo (Giorgio Agamben),
onde todas as opacidades repressivas são permitidas.
Lembro-me dos olhos da humanidade
vitrificarem com os cogumelos atómicos de Hiroxima e Nagasaki, marcando o
advento da total militarização das sociedades. Para trás ficavam os horrores e
a barbárie «artesanais» das I e II Guerras Mundiais, onde milhões de militares
e civis foram imolados. Passivamente assistimos à industrialização da morte
(campos de concentração), e aos conflitos regionais que continuam a alimentar e
a orientar os destinos da humanidade com a cumplicidade mercantil da ciência e
da tecnologia.
O impacto da Guerra Colonial
(1961-1974), eternizava-se e era indissociável do serviço militar obrigatório
ou da deserção para parte incerta, no entanto chegavam-nos notícias
fragmentadas, desfasadas, vigiadas, censuradas de um admirável mundo novo
(Aldous Huxley), dos movimentos pacifistas como os Beatniks, assumindo a figura do «anti-herói» na marginalidade das
obras de William Burroughs, de Allen Ginsberg e de Jack Kerouac, ou dos Hippies com o seu grande «guru», Timothy
Leary, que elaborava alucinadas miscigenações entre psicologia, sociologia,
antropologia e arte (psicadélica), do amor livre, das manifestações pacifistas
antiguerra (I wont’t fight in Vietnam),
das alternativas comunitárias radicalizando o abandono da sociedade de consumo
(Jean Baudrillard), dos assassinatos dos Kennedy (John - 1963 e Robert - 1968)
do Martin Luther King (1968), da personagem mítica de Che Guevara fotografado pelo
Korda (Alberto Diaz Gutierrez) com uma Leica M2, da Leni Riefenstahl e os
filmes nunca vistos, do maravilhoso Picasso com a Guernica a infernizar o
Franco, das latas do Andy Warhol, do Roy Lichtenstein e a banda desenhada
transformada em obra de arte, do IKB (International
Klein Blue) de Yves Klein, da imagética consumista da Pop Art, da sedução do Maio de 68, com toda a utopia
estudantil contestatária da ordem internacional estabelecida, enchendo Paris de
barricadas e maravilhosos slogans (L’obéissance
commence par la conscience et la conscience par la désobéissance) e das viagens
em motas velhas que nos levassem para bem longe, para o sul da Grécia.
Faziam parte do nosso imaginário,
entre muitos autores como Gaston Bachelard (A Terra e os Devaneios da Vontade),
Herbert Marcuse (e o homem unidimensional), Carl Yung (com a ideia dos
arquétipos e do inconsciente colectivo), Claude Lévi-Strauss (e o pensamento
selvagem), René Guénon e o Titus Burckhardt (a paixão pela sophia perennis), Mircea Eliade (e as imagens e os símbolos),
Gilbert Durand (a imaginação simbólica), Jean-Paul Sartre (os homens servis),
Noam Chomsky (a dignidade do individuo em relação ao estado), Guy Debord (sociedade do espetáculo), Jean
Baudrillard (sociedade de consumo) e o Roland Barthes (com o sistema da moda),
discutidos com a música de fundo do Wagner para nos lembrar da condição humana
e dos mitos que nos habitam, ou ouvindo os protestos alternativos da Janis
Joplin, do Jimi Hendrix, do Bob Dylan, do Zeca Afonso, do Ravi Shankar, da Joan Baez, do Miles Davis, dos Beatles, dos Led
Zepplin, os Pink Floyd, os Doors, do Adriano
Correia de Oliveira, do Leonard Cohen, do Otis Redding e do Léo Ferré, cujas
letras e musicas nos inflamavam e nos faziam reconhecer a necessidade de
assumir posicionamentos de resistência (Ni
Dieu Ni Maître) como era o caso da objecção de consciência fervorosamente e
calorosamente discutida em casa do Agostinho.
Estas inquietudes sobre a consciência de si, evitaram em mim o consentimento,
o esquecimento e a resignação, em grande medida, porque tive figuras tutelares como
a Hannah Arendt (Desobediência Civil), o Henry David Thoreau (A Desobediência
Civil) o Martin Heidegger (Carta sobre o Humanismo) e o Mahatma Ganghi (e os protestos
pacifistas) que eram capazes de descarnar os protocolos de sacrifício impostos
aos outros esvaziando e mumificando (Mário Perniola) qualquer horizonte de
humanidade. O espectro da Guerra Colonial marcou profundamente a minha geração,
o nosso imaginário estava habitado por imagens que geravam uma tensão
conflituosa insuportável, que não era possível apaziguar que tinha
inevitavelmente de acabar.
Ao intitularmos esta instalação
como: «Eranos – Bang! Bang! A Conciênca de Si», pretendemos evocar um mitema
libertador, intuído no enigma ocasional da negação de uma cultura de sacrifício
e esquecimento. O processo de «coisificação - industrial» desta exposição tenta
acentuar intencionalmente a dimensão de «colectivo-anónimo», de «linha de
montagem» e da precariedade dos seres, a forma de o expressar passou pela
criação de desenhos que foram tratados em computadores e projectados por
intermédio de ampliadores analógicos (Durst 138 S), utilizando-se cartão
reciclado canelado em painel (Proforma-Guimarães), com uma espessura capaz de manifestar
a fragilidade do corpo na presença das balas, este cartão foi serrado e posteriormente
pintado recorrendo a moldes (seleção de cores) que obrigavam ao nivelamento das
formas (apagamento da individualidade) provenientes da matriz fotográfica
utilizada. As cores são lisas, uniformizadas, impessoais e foram aplicadas com pistola,
rolo, trincha, spray e outros instrumentos feitos especificamente para que não
existisse grande controle actuante, mas que instaurassem as cadências monótonas
da produção industrial. O balão «Bang!», é uma apropriação fragmentada do Roy
Lichtenstein e colado acidentalmente sobre o corpo das figuras. Os números e
letras (código de série) são riscados e pintados por intermédio de alfabetos em
chapa e nas costas de cada um dos soldadinhos, estão inscritos números do
balanço estatístico dos países envolvidos na
I Guerra Mundial, dos mobilizados, dos mortos, dos feridos, dos
desaparecidos e dos prisioneiros (Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes).
Pretendia conceber um dispositivo
imagético convocando as imagens dos soldados impressos em cartolinas que se
recortavam e se colocavam em pé dobrando a base e com os quais se brincava às
guerras. Estes soldadinhos adquiriram a escala real, representam jovens do
Colégio Militar do curso (1966-1973), portadores de números que lhes foram
atribuídos e os identificavam, mas que ao longo dos anos foram simbolicamente atingidos
(Bang !) por todas as desilusões e imagens de guerra a que estiveram expostos.
Estas «coisas efémeras» com a
configuração «meninos da luz» são simultaneamente um tributo aos jovens que na
sua candura e generosidade participaram morrendo ou sobrevivendo na I Guerra
Mundial, ao meu saudoso amigo Agostinho Sanches, com quem partilhei as
angustias dos «dias de chumbo» e as alegrias da inexistência do serviço militar
obrigatório, aos camaradas do curso do Colégio Militar, presentes como árvores
frondosas, portadores de códigos e valores espartanos transmitidos e vividos
durante toda a existência, à ligação inquebrantável gerada entre eles, forjada
na endurance das «firmezas», nas idas a Mafra, nas formaturas, nas praxes, na
instrução militar, nas salas de estudo, no toque de alvorada que nos despertava
para as manhãs luminosas anunciadoras do futuro (carpe diem). É também o reconhecimento pelo engenho e arte dos
militares como o meu avô, que profissionalmente prepararam milhares de jovens
para olharem a morte de frente sendo capazes de a saudar com um sorriso, testemunhado
por estas pinturas que nos cercam e nos olham dizendo na sua visibilidade:
«Lembrem-se !…». Termino reconhecido pelo enorme contributo dado pelo Director
do Museu Militar Coronel Luís Paulo de Albuquerque e pelo pintor Ilídio
Salteiro ao realizarem um conjunto de exposições subordinadas à evocação da I
Guerra Mundial como actos de memória que só a dimensão da arte nos pode fazer
sentir e compreender.
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Amieira do Tejo –
2018
Hugo Ferrão