quarta-feira, 5 de abril de 2017

JOÃO PAULO QUEIROZ E A PROCURA DA GNOSE




João Paulo Queiroz e a procura da gnose
  
Hoje a vida desenvolve-se em volta da felicidade fácil dos sorrisos do facebook. Toda a gente é feliz, a vida é sorridente! O planeta não é redondo, é apenas superfície. Superfície polida de preferência, brilhante, sorridente! Essa felicidade excedente de si própria é contagiante, viral! Pandémica! O esgar do riso entranhou-se, estático durante os segundos necessários, já sem necessitar de ensaios. Toda a gente o articula com um jeito que parece inato, tal como o ator que se obriga a viver o riso do personagem que encarna. Parece não haver dúvidas sobre a felicidade que todos demonstram. Parece até que ninguém se sente infeliz, desamparado, ignorado, frustrado, envergonhado, vencido, esfomeado, doente, sem morada. Parece que neste planeta ninguém tem medos, ninguém sofre, ninguém é consciente. Parece que todos querem parecer iluminados pela vida, pelas divindades, pelo conhecimento!
Mas para que servem essas iluminações? Para nos sentirmos felizes?
Existem hoje incomensuráveis equívocos acerca do que é ser ente. Considero que esses equívocos se repercutem em conceitos como o de humanidade, o do sentir, o de conhecer, assim como em todas as declinações dos verbos ser e haver, muitas já em desuso na comunicação corrente…
Mas para que serve interrogarmo-nos, para que serve percebermos, ou apenas conhecermo-nos, aos nossos limites máximos e mínimos, como, o quê e porquê temos sentimento ou “pré-sentimento”?
Por regra, o conhecimento adquire-se quando se consegue identificar padrões. Quando se encontra a coerência da reconstrução de mundos, elos que unem elementos até aí desconexos, quando se entende a interligação do que é móvel e cíclico no ente, do espelho e da transparência do eu e do outro. E, este reflexionar, é já aquilo que normalmente se designa por ciência, por gnose ou por êxtase. Deveria ser apenas a partir deste ponto que à vivência da vida era dada autoridade para sorrir. Interiormente fascinados poderíamos então sorrir. Sentir a amplitude do regozijo, rindo.

João Paulo Queiroz pinta ao usar a pictoralidade como meio de aproximação a um território modelo onde o seu ente se reflete em recolhimento. Esta expansão espiritual contida, como um artista-asceta na procura do não visível na visibilidade das coisas onde se transmuta. Porque o ver do olhar concentrado do pintor acaba por ser uma transmutação do ente na coisa que vê. O autor torna-se no que pinta desvelando os padrões mentais que unem ente e mundo natural. Porque o desenho é um ato mental.
Este autor inicia um percurso laboratorial ontogénico sobre um determinado ecossistema complexo existente num determinado território de cerca de 300 m2 e reanalisando-o ciclicamente, num período em que o eixo da terra está perpendicular ao sol. Esta proximidade sugere-nos que o seu objeto fundamental seja a luz ou a sua incidência sobre as superfícies do mundo e as modificações que lhes provoca. Se é verdadeiro que a nossa espécie é cega para além dos 370-750 nm (nanómetros), também acontece que a variação daquilo que vemos e que existe perante o nosso olhar está em permanente mutação devido à impermanência da luz natural. É apenas esta pequeníssima faixa de 380 nm do espectro electromagnético que se tem quando se trabalha com a visualidade do mundo, portanto, estamos a falar de um trabalho altamente contido e analítico que tem de se submeter a uma metodologia muito rigorosa com o agravo de exigir precisão e rapidez na captação das gradações lumínicas devido à fugacidade da modelação dos momentos de incidência da luz sobre as superfícies.
Como um pensador cujas ferramentas são os olhos e a luz, JPQ desenvolve uma pintura metódica, analítica e imparcial. Referenciando-se por um calendário antiquíssimo, cósmico, o autor procura a qualidade da luz visível, investigando as materialidades com que modela as formas. Perceber a luz, impossível de ver diretamente ou na sua máxima intensidade mas apenas através da reflexão nas coisas que ilumina, é perceber e comungar a essência das coisas, neste caso, do território eleito.
Um território mítico, estranho e misterioso, quanto mais não seja pela especificidade que lhe foi incorporada pelo pensamento, fé ou imaginação ativa de tantos milhões de seres humanos. Uns 300m2 eleitos na imensidão do planeta, escolhidos para ensaiar a reflexão da luz. Como um sorriso interior de comunhão com o mundo.

O riso, no ente, ilumina-o! Porque vibra, modela-o indeterminávelmente como luz invisível para os olhos. É nele que se revela o milagre da conjunção do ente com um todo, qualquer que este seja, e que naquele instante se transforma em entusiasmo de recompensa. Ao riso não se olha para o ver mas para se percepcionar a iluminação que provoca. Por isso é contagiante. O riso, o sorriso, comunga-se!
É apenas por isto que os rires e sorrires ataráxicos dos Facebook são tão morbidamente visíveis aos nossos olhos… Fixados como esgares não iluminam rostos, modelam-nos apenas através da forma…

Evocar a tragédia coletiva fruto da ignorância, avidez e oportunismo de uns sobre outros é trazê-la à superfície da consciência, repensá-la e reorganiza-la metaforicamente ao nível da catarse.
Evocar os antepassados, honrá-los e apaziguá-los é uma tradição muito antiga que a Oriente ainda tem grande importância.
Nunca se há-de saber quantas vítimas causou a 1ª Grande Guerra mas foram muitas, demasiadas. E não apenas gente humana porque todo o ser vivo foi nela martirizado. Os equídeos, “recrutados institucionalmente”, os cães e os pombos foram os que mais diretamente intervieram no drama. Mas quantas florestas não foram dizimadas, quanta terra não foi esventrada exatamente como se corpos humanos fossem…
Neste ano de 2017 completam-se 100 anos sobre o auge deste conflito sob a indiferença do nosso atual riso cristalizado, ou “petrificado”, do Facebook. Talvez já não se consiga atingir o sentimento, talvez tenhamos desistido da humanidade que nos calibrava e definia como “seres humanos”, talvez seja já uma das visibilidades do Antropoceno. Talvez as tragédias tenham sido maiores e mais injustas do que era possível.
Evocar este primeiro grande conflito global não é apenas relembrar a dor e os atos de bravura ignorada mas também reconhecer a dor e a valentia com que estamos obrigados a viver. A guerra escraviza o sentido da civilidade com tal enraizamento que torna muito difícil refazermo-nos íntegros.
Num território modelo, através da árvore, JPQ tenta encontrar qualquer sinal de humanidade evocativo dessa integridade perdida. Apenas a natureza no seu correr, a árvore, está ainda apta a ser um elemento redentor. Um elo entre as tragédias dos humanos e a indiferença do tempo. Árvores como um pequeno exército, árvore como um soldado desconhecido. Árvore como elemento que une a terra ao céu – tal como cada ente se deveria reconhecer.
Qualquer atitude parece sempre pequena para evocar o drama coletivo, apenas o ser-se mártir dessa dor, da dor do Outro que somos nós próprios, a pode resgatar e possibilita que cada um de nós seja incorrupto. Como a luz que irradia da energia que se reflete das superfícies dos corpos e que varia de momento a momento… Por isso o riso é libertador, assim como as obras que João Paulo Queiroz apresenta na Sala da Grande Guerra do Museu Militar de Lisboa, numa exposição que intitulou Entre a Terra e o Céu, umas das muitas ações de arte atual comissionadas pelo pintor Ilídio Salteiro e que constituem a evocação da 1ª Grande Guerra no Museu Militar de Lisboa.


Dora Iva Rita

Lisboa, 21 de março de 2017