João Paulo Queiroz e a procura da gnose
Hoje a vida desenvolve-se em
volta da felicidade fácil dos sorrisos do facebook.
Toda a gente é feliz, a vida é sorridente! O planeta não é redondo, é apenas
superfície. Superfície polida de preferência, brilhante, sorridente! Essa
felicidade excedente de si própria é contagiante, viral! Pandémica! O esgar do
riso entranhou-se, estático durante os segundos necessários, já sem necessitar
de ensaios. Toda a gente o articula com um jeito que parece inato, tal como o
ator que se obriga a viver o riso do personagem que encarna. Parece não haver
dúvidas sobre a felicidade que todos demonstram. Parece até que ninguém se
sente infeliz, desamparado, ignorado, frustrado, envergonhado, vencido,
esfomeado, doente, sem morada. Parece que neste planeta ninguém tem medos,
ninguém sofre, ninguém é consciente. Parece que todos querem parecer iluminados
pela vida, pelas divindades, pelo conhecimento!
Mas para que servem essas
iluminações? Para nos sentirmos felizes?
Existem hoje incomensuráveis
equívocos acerca do que é ser ente. Considero que esses equívocos se repercutem
em conceitos como o de humanidade, o do sentir, o de conhecer, assim como em
todas as declinações dos verbos ser e haver, muitas já em desuso na comunicação
corrente…
Mas para que serve interrogarmo-nos,
para que serve percebermos, ou apenas conhecermo-nos, aos nossos limites
máximos e mínimos, como, o quê e porquê temos sentimento ou “pré-sentimento”?
Por regra, o conhecimento
adquire-se quando se consegue identificar padrões. Quando se encontra a
coerência da reconstrução de mundos, elos que unem elementos até aí desconexos,
quando se entende a interligação do que é móvel e cíclico no ente, do espelho e
da transparência do eu e do outro. E, este reflexionar, é já aquilo que normalmente
se designa por ciência, por gnose ou por êxtase. Deveria ser apenas a partir
deste ponto que à vivência da vida era dada autoridade para sorrir.
Interiormente fascinados poderíamos então sorrir. Sentir a amplitude do
regozijo, rindo.
João Paulo Queiroz pinta ao usar
a pictoralidade como meio de aproximação a um território modelo onde o seu ente
se reflete em recolhimento. Esta expansão espiritual contida, como um
artista-asceta na procura do não visível na visibilidade das coisas onde se
transmuta. Porque o ver do olhar concentrado do pintor acaba por ser uma
transmutação do ente na coisa que vê. O autor torna-se no que pinta desvelando
os padrões mentais que unem ente e mundo natural. Porque o desenho é um ato
mental.
Este autor inicia um percurso
laboratorial ontogénico sobre um determinado ecossistema complexo existente num
determinado território de cerca de 300 m2 e reanalisando-o
ciclicamente, num período em que o eixo da terra está perpendicular ao sol. Esta
proximidade sugere-nos que o seu objeto fundamental seja a luz ou a sua
incidência sobre as superfícies do mundo e as modificações que lhes provoca. Se
é verdadeiro que a nossa espécie é cega para além dos 370-750 nm (nanómetros), também
acontece que a variação daquilo que vemos e que existe perante o nosso olhar
está em permanente mutação devido à impermanência da luz natural. É apenas esta
pequeníssima faixa de 380 nm do espectro electromagnético que se tem quando se
trabalha com a visualidade do mundo, portanto, estamos a falar de um trabalho
altamente contido e analítico que tem de se submeter a uma metodologia muito
rigorosa com o agravo de exigir precisão e rapidez na captação das gradações lumínicas
devido à fugacidade da modelação dos momentos de incidência da luz sobre as
superfícies.
Como um pensador cujas ferramentas são os olhos e a luz,
JPQ desenvolve uma pintura metódica, analítica e imparcial. Referenciando-se
por um calendário antiquíssimo, cósmico, o autor procura a qualidade da luz
visível, investigando as materialidades com que modela as formas. Perceber a
luz, impossível de ver diretamente ou na sua máxima intensidade mas apenas
através da reflexão nas coisas que ilumina, é perceber e comungar a essência
das coisas, neste caso, do território eleito.
Um território mítico, estranho e misterioso, quanto mais
não seja pela especificidade que lhe foi incorporada pelo pensamento, fé ou
imaginação ativa de tantos milhões de seres humanos. Uns 300m2 eleitos
na imensidão do planeta, escolhidos para ensaiar a reflexão da luz. Como um
sorriso interior de comunhão com o mundo.
O riso, no ente, ilumina-o! Porque vibra, modela-o
indeterminávelmente como luz invisível para os olhos. É nele que se revela o
milagre da conjunção do ente com um todo, qualquer que este seja, e que naquele
instante se transforma em entusiasmo de recompensa. Ao riso não se olha para o
ver mas para se percepcionar a iluminação que provoca. Por isso é contagiante.
O riso, o sorriso, comunga-se!
É apenas por isto que os rires e sorrires ataráxicos dos Facebook são tão morbidamente visíveis
aos nossos olhos… Fixados como esgares não iluminam rostos, modelam-nos apenas
através da forma…
Evocar a tragédia coletiva fruto da ignorância, avidez e
oportunismo de uns sobre outros é trazê-la à superfície da consciência,
repensá-la e reorganiza-la metaforicamente ao nível da catarse.
Evocar os antepassados, honrá-los e apaziguá-los é uma
tradição muito antiga que a Oriente ainda tem grande importância.
Nunca se há-de saber quantas
vítimas causou a 1ª Grande Guerra mas foram muitas, demasiadas. E não apenas
gente humana porque todo o ser vivo foi nela martirizado. Os equídeos, “recrutados
institucionalmente”, os cães e os pombos foram os que mais diretamente
intervieram no drama. Mas quantas florestas não foram dizimadas, quanta terra
não foi esventrada exatamente como se corpos humanos fossem…
Neste ano de 2017 completam-se
100 anos sobre o auge deste conflito sob a indiferença do nosso atual riso
cristalizado, ou “petrificado”, do Facebook.
Talvez já não se consiga atingir o sentimento, talvez tenhamos desistido da
humanidade que nos calibrava e definia como “seres humanos”, talvez seja já uma
das visibilidades do Antropoceno. Talvez as tragédias tenham sido maiores e
mais injustas do que era possível.
Evocar este primeiro grande
conflito global não é apenas relembrar a dor e os atos de bravura ignorada mas
também reconhecer a dor e a valentia com que estamos obrigados a viver. A
guerra escraviza o sentido da civilidade com tal enraizamento que torna muito
difícil refazermo-nos íntegros.
Num território
modelo, através da árvore, JPQ tenta encontrar qualquer sinal de humanidade
evocativo dessa integridade perdida. Apenas a natureza no seu correr, a árvore,
está ainda apta a ser um elemento redentor. Um elo entre as tragédias dos
humanos e a indiferença do tempo. Árvores como um pequeno exército, árvore como
um soldado desconhecido. Árvore como elemento que une a terra ao céu – tal como
cada ente se deveria reconhecer.
Qualquer
atitude parece sempre pequena para evocar o drama coletivo, apenas o ser-se
mártir dessa dor, da dor do Outro que somos nós próprios, a pode resgatar e
possibilita que cada um de nós seja incorrupto. Como a luz que irradia da
energia que se reflete das superfícies dos corpos e que varia de momento a
momento… Por isso o riso é libertador, assim como as obras que João Paulo Queiroz
apresenta na Sala da Grande Guerra do Museu Militar de Lisboa, numa exposição
que intitulou Entre a Terra e o Céu,
umas das muitas ações de arte atual comissionadas pelo pintor Ilídio Salteiro e
que constituem a evocação da 1ª Grande Guerra no Museu Militar de Lisboa.
Dora Iva Rita
Lisboa, 21
de março de 2017